quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O VIADO EXPIATÓRIO




Vez em quando a gente se pega ouvindo a conversa alheia, como se uma força interior interrompesse nossos pensamentos para a transmissão de um pronunciamento. Não mais que de repente, alguma mão sintoniza a nossa mente numa frequência específica e o que era ruído vira som estéreo. A gente disfarça, pois lembra da mãe recriminando a gente vidrado na conversa dela com uma tia, mas nosso olhar estatelado para longe das pessoas que conversam é só um modo de a gente apurar a a audição.
Dia desses venho eu de ônibus para casa, absorto em sono, cabeça ancorada na janela, quando quase dá para ouvir a vinheta do plantão da Globo na minha mente. Um interesse súbito por um papo entre dois passageiros à minha frente desprega minhas pálpebras. Falam de uma coisa qualquer, acho que de futebol, nada que a priori valha os quinze minutos de cochilo até descer no meu ponto. Mas – vai entender os desígnios do além!... – o diálogo evolui para aquilo que o Universo quer me revelar. De repente, um dos dois faz uma gozação com seu interlocutor, ao que ouve um sonoro e reverberante “você é viado, é?” DE eufórico, o indivíduo gozador murcha como alface no vinagre, desconversa, ri desconcertado. Eu já não escuto nada, estou sob o efeito daquilo a que o Universo me expõe.
Penso eu por que cargas d’água um suspense hitcockiano em torno da proclamação de algo aparentemente tão banal e chulo. Tarde demais: a linha Praia do Flamengo-Lapa me leva a outro destino.
Aqueles instantes de murcheza do indivíduo à minha frente me enchem de constrangimento e nojo. O seu amigo lhe jogara vinagre com um simples “você é viado, é?”. E dá pra sentir o azedume no ar. Por que não disse algo como “você é idiota?” ou “você é burro?”, ou algo como “vá tomar banho”? Não, isso é bala de festim. Perguntar-já-chamando-de-viado é muito mais certeiro e mortal. É quando um legítimo macho impõe-se sobre o outro, ameaçando a virilidade do segundo. Virilidade em xeque: sinal de alerta.
“Vi-a-do”. Palavra sonora. Pesada. Feita para submeter um outro. “Viado” com “i” pra diferenciar do animal galhudo, pra não se confundir a “bicha” com o bicho. “Viado” nome usado popularmente para designar o sujeito homossexual. Não confundir “viado” com “gay”. Gay é um rapaz de San Francisco, fã de Barbra Streisand. “Bicha” também é uma outra coisa, é menino franzino, calça justa, chacota na escola. “Viado” é coisa mais séria, mais densa. “Viado” é uma entidade do folclore. Voz anasalada, rebolando na rua. “Viado” molesta o filho da vizinha., cora cabelo, leva facada, dá facada. “Viado” é um nome pra chamar o homossexual que leva a fama quando deita ou não na cama.
Na visão do macho-padrão, o “viado” é um sub-homem. É a degeneração moral e física do gênero masculino. É aquele que renuncia aos privilégios da masculinidade, para se revestir das idiossincracias femininas. É o ônus do feminino sem o bônus da vagina. É um desperdício de músculos e de gogó. E é uma ameaça : o “viado” não escolhe tempo nem lugar e tem sede de sexo. E olha que o “viado” nem goza, é quase um receptáculo. Seu prazer é dar prazer a um macho um pouco fora do padrão.
O bom “viado” é aquele que se sabe e decora seu papel. Ele sabe que o preço da convivência é a eterna chacota. O “viado” tem que rir quando lhe chamam por tal. “Ê, ‘viado’!”, berra um macho padrão.. “eu é?!”, pergunta divertidamente zangado o “viado”.
E assim é, desde os “viados” de sempre aos que virão amanhã. O “viado” é a diversão do bairro. Não o “viado-meu-filho”, mas o “viado-filho-dos-outros”. O melhor de todos é o “viado-sem-família, que esse parece que pede para ser tratado por “viado”, já que não tem parentes que reclamem seu respeito.
O “viado” é o rei na corte dos bobos. Rua que não tem “viado” não tem logradouro, não tem mistério e boato, faz os pqeuenos machos padrão chamarem-se uns aos outros de nomes que não animam nenhuma discussão. “Cormo” e “filha-da-puta” são substitutos razoáveis, mas não fazem o mesmo efeito. Ninguém tem culpa da infidelidade alheia, tampouco de ter sido concebido em ventre muito visitado. Mas pra “viado” ninguém dá desconto: “foi escolher ser ‘viado’ por que quis”.
Isso tudo me veio de supetão, num desses filmes que se costuma dizer que passam na mente dos que estão pra morrer. Um instante de uma lucidez azeda. Estou a um ponto do meu destino. O macho-padrão autor da célebre frase ficou no caminho. Deve ter desembarcado vitorioso, afirmado pela negação do outro. Entre os seus, ele deverá reproduzir suas palavras mágicas toda vez que um outro macho-padrão ousar arranhar a sua condição biblicamente instituída de varão. Aos domingos, as piadas do Didi vão faze-lo rir e reafirmar novamente sua supremacia. O velho trapalhão também é um macho-padrão no que tange ao dever de identificar um “viado” e atribuir a ele todas as coisas bizarras e deprimentes.
Levanto-me, vou saltar. Antes dos degraus, tenho o instinto de voltar para trás a cabeça, como se quisesse estender minha solidariedade ao pobre sujeito tomado por “viado”. Penso que ele não tenha se ofendido, esse tipo de brincadeira é normal entre amigos. Desço. O ônibus já longe, penso cá comigo, qual azedo não estará o tal sujeito caso, lá com ele, ele seja – lobo em pele de cordeiro – um bom e pobre “viado”.

Carlos Eduardo Oliveira